sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Amamentando prematuros

Quando o assunto é amamentação de bebes prematuros, tudo parece muito polemico, pouco uniforme, longe ainda de um consenso.
A falta de um conjunto de normas amplamente aceito pelas diversas áreas do conhecimento e da pratica ligada a esse tema tem gerado a adoção de condutas muitas vezes absolutamente opostas e com isso não se percebe, como acontece quando o tema é a amamentação de bebes a termo, um progresso sensível que permita passos seguintes e aperfeiçoamento em cima de uma base comum.

Chegamos no Brasil a um índice em torno de 10 % de nascimentos prematuros.
Significa dizer que 10% de nossas crianças em algum momento passarão por necessidade de cuidados neonatais mais delicados.

A amamentação, por sua importância indiscutível para nossa espécie, merece atenção especial e especialmente uniformizada.

Segue uma lista de observações que merecem maior atenção por parte de seus cuidadores no sentido de criar uma linha de conduta capaz de facilitar progressos futuros para bebes, mãezinhas, cuidadores e pesquisadores.

1.      Não se pode esperar sucesso na amamentação de bebes nascidos prematuramente se não for oferecido a esses bebes um cuidado respeitoso e ajustado na medida de sua capacidade de recebe-los. Cuidados que podem ser definidos como contingentes. Que falam a mesma língua do bebe. Que não o estressem. Que facilitem sua organização e respeitem seu desenvolvimento. Muitos estudos como o NIDCAP tem estabelecido esses parâmetros e reduzir a carga de estímulos inoportunos da UTI Neo é essencial, cabendo às equipes a responsabilidade de adotar esses procedimentos. É esse bebe que vai sugar o seio materno. É ele que vai se protagonizar as interações bio-psico-sociais responsáveis pelo aleitamento. Descuidar-se dele e trata-lo de forma negligente é optar pelo insucesso e pelo fracasso.

2.      Não se pode esperar sucesso na amamentação de bebes nascidos prematuramente se não for oferecido a suas mães um cuidado respeitoso como parte da rotina. Mãe não é visita. É tempo sem hora. Luz que não se apaga quando sopra o vento e chuva desaba. Furtar a mãe do beneficio da companhia é impor-lhe uma dor que a língua portuguesa não nomina. Viuvez significa a falta do marido. Orfandade, a falta de seus pais. Mas a falta de um filho não tem nome suficientemente explicativo. É essa mãe que vai amamentar. É ela que vai se tornar alvo das ações bio-psico-sociais responsáveis pelo aleitamento. Descuidar-se dela e trata-la de forma negligente é optar pelo insucesso e pelo fracasso.

3.      Não há o menor fundamento na iniciação do primeiro contato com o seio desses bebes no momento em que completam 34 semanas ou peso de 1800 gramas ou mais. O primeiro contato deve ser precoce e facilitador, ainda que não permita sucção eficaz ou lactação suficiente. Privar o bebe desse primeiro contato (e o mais certo seria defini-lo como temprano, no tempo certo, e não como precoce, que é o mesmo que compreende-lo como antes do tempo, o que não é verdade) é no mínimo impor dificuldades adicionais às já pertencentes à sus prematuridade e à da sua mãe.

4.      A avaliação transdisciplinar com interação harmônica das inúmeras praticas e saberes sobre o AM em RNPT é inevitável. A fonoaudiologia precisa ser presença obrigatória, diária e 24 horas nas UTIs neonatais. Salvar a espécie humana não tem preço. Parecer da fono solicitado por pediatra é coisa do passado. O fono deve ter papel de destaque e autonomia dentro de uma Unidade Neonatal. A discussão da conduta deve ser acordada com o pediatra de igual para igual. Isso requer o estabelecimento de um parâmetro previamente discutido, uma base comum, quase um consenso onde não caibam antigos paradigmas que desrespeitam um novo olhar para esse bebe e para sua mãe, em cima do qual serão traçadas as condutas comuns, longe do atraso, da cegueira e do determinismo cego. A fonoaudiologia, quando respeitosa, é como um anjo da amamentação.

5.      É necessário estabelecer um modelo de cuidado que permita a esse bebe, quando distante da mãe, manter seu reflexo de sucção que já existia dentro do útero. O nascimento prematuro cria um hiato no mecanismo de sucção fisiológica e preparatória desses bebes para o peito. Da mesma forma facilita o contato com uma serie de elementos que funcionam como estimulo indecoroso à amamentação: sondas, cânulas, tubos, etc... O uso de uma modalidade de chupeta de tamanho mínimo (muito menor do que as disponíveis no mercado) para ser utilizada com fins de preservação do estimulo da sucção em alguns bebes de muito baixo peso cujo contato materno por inúmeras razões não é possível precisa ser melhor determinado. Faltam estudos acerca da chupeta adequada, da clientela adequada, das indicações adequadas, do tempo possível e da validade desses conceitos como protetores da amamentação e não como seus desfavorecedores ou inimigos.

6.      É necessário criar com a mesma consistência com que se fundamentou a Iniciativa Hospital Amigo da Criança, uma Iniciativa Hospital Amiga do Bebe Prematuro, onde sua especificidade que não é contemplada pelo IHAC seja valorizada e não lhe sejam impostos conceitos que embora absolutamente aplicáveis ao bebe a termo não lhe dizem respeito. Valores especialmente dedicados a vida e a fisiologia desses bebes devem ser tratados de modo mais profundo. Sua sucção. O uso do colostro. A presença materna. A transferência do leite. O uso racional do copinho. A sua organização. Nada disso é contemplado no IHAC. Mas cada um desses pontos é essencial para este bebe.

7.      O uso do colostro, genericamente conhecido como colostroterapia, precisa ser mais aplicado, e aplicado de modo mais definido. A importância da participação da mãe neste momento e os resultados dessa interação para a otimização da produção de leite e das repercussões de seu uso para a imunologia do bebe são fundamentais. Necessitamos de mais evidencias. Mais experiências. Mais tentativas. Mais gente fazendo. Mais gente estudando. Mais mães sendo beneficiadas. Mais bebes sendo beneficiados.

8.      A capacidade de produção de leite humano pela mãe prematura ainda é uma incógnita para a maior parte dos serviços. Considera-se sua impossibilidade de produção de leite em quantidade suficiente. Sua condição prematura, frágil e indefesa, associada a uma falta de inclusão do cuidado materno na rotina das unidades essencialmente neonatais só agrava esse quadro. As UTIs Neonatais não estão, em sua maioria, preparadas para as mães que são, também em sua maioria visita, e muitas vezes inoportuna e perturbadora. É necessário criar e fortalecer mecanismos que permitam aproveitar e conhecer mais o potencial de produção de leite pela mãe prematura. Um longo caminho há que ser percorrido nessa direção.

Possivelmente existem muitos tópicos ainda a serem abordados para tentarmos sucesso em nossas investidas.

Essa colaboração inicial nem é a ultima palavra.

É só fogo na conversa para que ela não acabe na mesmice e no sono dos injustos.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Amamentando

Chegara para ela o grande momento.
Depois de 14 intermináveis dias de afastamento e sofrimento em uma UTI Neonatal que não conta a mãe como parte da cura, depois de terríveis dias de respirador e CPAP, aminas e cefalospirinas, parenterais e cateteres, depois dessa imensa tsunami salvadora, chegava seu filho à Unidade Intermediária apresentando estabilidade clinica e podendo por isso, conforme as normas desumanizadas daquele Hospital, ter um maior contato com a mãe, ainda que limitado.
Nascera o menino prematuramente após inesperado descolamento de placenta, pesando pouco menos de 1800 gramas. Salvo da morte aparente por tubos e bolsas infláveis, foi completamente artificial sua vida durante os primeiros dias na UTI.
Tornou-se uma lista de problemas e um conjunto de condutas. Não teve direito naquelas semanas a um nome, a um lar, ao sono, à noite ou ao silencio.
Não teve sequer considerada a sua dor fisica, conquanto os procedimentos todos lhe foram massacradamente aplicados de forma cruel e impiedosa.
Tratado como uma pecinha clinica, sobreviveu a seus cuidadores descuidados.
Chegara então, também para ele, sem que ele percebesse, o grande momento.
Meu filho! disse a mãe ao vê-lo pela primeira vez na Unidade, livre de tubos e conexões, aparentemente autônomo, dono da própria jornada dali para diante.
Era ainda inicio de plantão.
As mãos entrelaçadas como entrelaça a mão quem reza com fervor, alinhada ao olhar atento e com brilho materno daquela doce adolescente de seus 16 anos, me chamaram atenção.
Aproximei-me.
É fácil a aproximação entre os seres quando um deles tem doses mínimas de boa vontade e o outro é só sorriso. E aquela mãezinha era só sorriso.
Menina ainda e já mãe, metralhou-me com um numero sem fim de perguntas que quase sem fôlego tentava eu responde-las todas e de forma gentil como era o merecido repouso para aqueles corações já tão cansados.
Quando for assim, eu recomendo que a gente esqueça o relógio e peça licença ao profissional para permitir que o homem se manifeste em seu lugar.
E assim sendo, trocamos muitas palavras e sorrisos que a fizeram acreditar nas minhas amizade e boa intenção e me fizeram acreditar nas maravilhas que a minha ciência tem o poder de alcançar e fazer o coração dos homens atingir.
Foi quando o homem no lugar do profissional cedeu, ao olhar para a roupa da mãe, e perceber que da sua blusa escorria leite e não em pouca quantidade ou que não fosse imediatamente percebido por um observador distraído.
Retorna o médico à cena e vê ali a descarga ocitocinica essencial à amamentação que seria tema certo das próximas conversas.
Mãezinha, seu leite esta descendo...exclamei. Ela sorriu. Mais que depressa, e com tato, iniciei ali mesmo naquela hora as primeiras palavras sobre a amamentação, sua importância, o bebe sugar, essas coisas...
Foram mais minutos sem conta e empolgação sem medida.
À proporção que eu falava ela se animava e a animação dela era o combustível de novos caminhos e explicações sempre amorosas e sempre motivantes que eu lhe oferecia.
Explodimos então.
Tudo em volta cheirava ocitocina.
Foi quando, sempre por um desses reflexos inesperados e despercebidos, não sei de onde eu trouxe para ela uma frase que mudaria o rumo da nossa prosa:
Ah, mamãe, eu já ia esquecendo de dizer uma coisa: amamentar é bom demais e você tem tudo pra chegar lá, mas você não precisa conseguir ta?
Ela me olhou, sem sorrir pela primeira vez desde o inicio, e eu continuei
Sabe, mamãe, você e seu bebe estarem até aqui já é a maior prova de amor que vocês irão levar por toda a vida. Ele venceu a morte, o sofrimento, a prematuridade, a distancia dos pais. Você venceu o descolamento, o afastamento de seu filho, a tensão dos familiares, a frieza da equipe de saúde e hoje estão aqui os dois, um com o outro, completamente renascidos e inteiros, né? Você não precisa consegui nada. Você já conseguiu o maior premio que uma mulher pode dar a si própria e a seu filho: você é uma mãe exemplar. Posso aplaudir vocês?
Nessa hora fiz o teatrinho que às vezes faço até nos consultórios públicos para elogiar uma situação que careça de elogio: postei-me em pé e a aplaudi devagarzinho dizendo Parabéns mamãe, parabéns, bebê.
Nessa hora, nossa mãezinha começou a chorar. Aquela fortaleza adolescente encontrou, penso eu, nas minhas palavras, finalmente alguém que não dizia que ela tinha que ser forte. E ela desabou. Chorou como quem traz de volta ao coração presente as imagens e a intensidade da dor acumulada que não encontrara até ali um caminho próprio de escoar.
Imaginem como é difícil para mim me conter numa hora dessas. Tenho que pensar em um pedaço de pizza ou em um filme de Stallone pra não chorar junto.
Pela terceira vez esqueci o tempo.
Abracei aquela moça bonita e dei-lhe um beijo na testa.
Aos poucos seu soluço, acalentado pelo abraço e pelo silencio, passou.
Olhamos para seu filhote na incubadora assim. Ele arecia dormir um sono sereno.
Ele é lindo não é, Doutor?
E foi assim, naquela manhã sem hora, que se deu minha descoberta sobre apoiar o que não se percebe ou se pede para ser apoiado. Apoiar a fragilidade camuflada. A força frágil. A mãe que pede apoio sem deixar transparecer que precisa dele.
Foi assim naquela manhã.
Seu bebe é lindo mamãezinha. Seu bebe é lindo.

A mãe prematura

A mãe prematura é, invariavelmente a mulher que torna-se mãe antes do tempo. Esta antecipação, motivada por desvios da saúde da mãe ou do bebe, gera, também invariavelmente riscos para a mãe e para o filho prematuro que nasce. Tornar-se mãe prematuramente quase sempre traduz momentos dramáticos para a mãe e para o filho. Essa maternidade prematura está intimamente ligada a tratamentos em Unidades de Terapia Intensiva e riscos de vida iminente. É necessário, não bastasse o risco, ter vaga disponível para ambos. Encontrando a vaga, ainda assim é urgentemente preciso ter disponível o tratamento indicado.
A mãe prematura é muitas vezes uma adolescente sozinha e sem experiências. A carga de dor e sofrimento que a sua prematuridade e a de seu filho lhe submetem são como uma intensidade de vida imensamente maior do que a suportada pelas pessoas comuns. É isso. A mãe prematura não é uma pessoa comum. É um ícone de superação que a torna um ser especial, não bastasse a maternidade já lhe conferir esse destaque entre as humanas.
Recuperar-se e acompanhar a recuperação de seu pequeno filho que nada se assemelha ao que ela imaginou ver nascer um dia durante toda a gestação interrompida, é sua grande batalha. Vencer culpas e isolamentos familiares. Vencer a falta de instrução e os mitos sociais (será que um bebe desse tamanho vinga?), vencer as dificuldades de recursos clínicos e a impessoalidade e frieza habituais que as instituições de saúde dispensam a seus usuários. Vencer a distancia da casa ao Hospital. Vencer as dificuldades financeiras para estar com seu filho. Vencer a quebra do vinculo. Vencer o que seria invencível se ela não guardasse no seu coração a força quase maior que a força de uma mãe: a força de uma mãe prematura.
Dizia Caetano que em seus podres poderes, os homens avançam os sinais vermelhos e perdem os verdes. Como boçais. Assim procedem as instituições de saúde de nossa cidade, buscando verbas e recursos para equipamentos enquanto desprezam o vinculo materno infantil proporcionado pelo Método Mãe Canguru que permite às mães estarem com seus filhos oferecendo-lhes amor, calor e leite materno. Nenhuma instituição de saude de nossa cidade o aplica, conquanto existam aqui dezenas de leitos de terapia intensiva neonatal.
Sobreviventes dessa boçalidade, as mães prematuras percebem-se felizes a cada gramo de peso conquistada por seu filho. Cada gesto novo. Cada dia a mais livre do oxigênio é comemorado como grande vitória, digna de um grande premio. Não há detalhes para a mãe prematura e para seu filho. Tudo é milagrosamente grande e impressionante. Cada pequena conquista e cada minima queda são comparadas a um Everest ou a um grande abismo. E é necessariamente dolorosa e real sua relação diária com a morte iminente, com a piora constante, com a perda...
Se só mesmo as mães são felizes, como afirma Cazuza, maior felicidade pertence às mães prematuras e a seu exemplo de vida.
Haverá um dia no mundo alguma tarefa mais nobre que a de cuidar, alimentar e fazer crescer com segurança e alegria a vida de um bebe prematuro. Mas isso é matéria dos Anjos e segredo de Deus que não pertence à vida homens nem a seus dias.
À mãe prematura, nossa veneração e nosso carinho nessa data tão dela. 

Escrito para o Dia das Mães/2011